Cientistas mostram que efeitos da zika seguem graves na idade adulta

As consequências do vírus da zika para a saúde humana, desde que o surto começou no Brasil em 2015, ainda são um amontoado de interrogações. Um estudo desenvolvido por 17 pesquisadores brasileiros, entretanto, indica que os danos a quem foi exposto ao vírus podem ser sofridos na vida adulta – e mesmo por aqueles que não tenham nascido com problemas resultantes da infecção, como a microcefalia.

De acordo com a pesquisa, dificuldades motoras e alterações musculares são comuns aos infectados com o vírus. Os riscos de convulsões, problemas de memória e dificuldades de sociabilidade também são aumentados pelo vírus.

A pesquisa foi divulgada na tarde de hoje pelo periódico científico Science Translational Medicine, publicação da American Association for the Advancement of Science. A pesquisa pode projetar as consequências de longo prazo para as vítimas mais novas do vírus, como as crianças que se tornaram símbolo do problema – auxiliando assim que medidas sejam tomadas.

“Começamos a estudar os efeitos do vírus no final de 2015, frente às consequências devastadoras da epidemia no Brasil”, comenta a farmacêutica Julia Helena Rosauro Clarke, professora do Departamento de Biotecnologia Farmacêutica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em entrevista à BBC News Brasil.

Os 17 pesquisadores que compuseram o grupo, todos brasileiros, na maior parte são oriundos da mesma universidade – embora de diferentes institutos. Também colaboraram uma médica patologista do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer e um grupo especializado em epilepsia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Cobaias

Para tentar antever os resultados da zika na fase adulta, os pesquisadores utilizaram camundongos.

“Desenvolvemos um modelo de infecção com o vírus da zika no início da vida de camundongos, o que seria equivalente a uma infecção durante a o segundo e terceiro trimestres de gestação em humanos, e acompanhamos seu desenvolvimento até a idade adulta”, diz Clarke.

“Durante toda a vida, esses animais apresentaram problemas motores e alterações musculares. Na vida adulta, esses animais eram mais suscetíveis a apresentarem convulsões, apresentaram prejuízo de memória e de sociabilidade, além de apresentar áreas de calcificação e morte no cérebro”, explica a pesquisadora.

Ela conta que os testes também indicam que o vírus continua se replicando no cérebro ativamente, ainda na idade adulta, mesmo muito depois da fase aguda da infecção.

Além da microcefalia

“Isso nos indica que os efeitos do vírus da zika no cérebro podem ir muito além da microcefalia, e que mesmo aqueles bebês que não apresentaram microcefalia ou alterações detectáveis ao nascimento, podem vir a apresentar problemas durante o crescimento e até na idade adulta”, observa Clarke.

Segundo os pesquisadores, os efeitos em roedores não necessariamente seriam idênticos em seres humanos. Contudo, conforme aponta a pesquisadora, “o modelo foi capaz de reproduzir alguns efeitos que já foram detectados em bebês e fetos expostos ao zika vírus”.

Ou seja: problemas motores, convulsões e áreas de calcificação e morte no cérebro durante a infância. “Isso nos mostra que é um modelo que em diversos aspectos se parece com a doença em humanos, e portanto pode servir para mimetizar o que veremos em humanos. Outros estudos em espécies mais semelhantes aos humanos, como macacos, darão mais força aos nossos achados”, afirma.

Remédio

A pesquisa chegou a um fármaco que pode ajudar a diminuir ou retardar os efeitos nocivos da zika na vida adulta. Trata-se de um anti-inflamatório que bloqueia uma molécula específica relacionada com a inflamação, chamada de TNF-alpha.

“(Este medicamento) é comercializado no Brasil para tratar artrite reumatoide, por exemplo, e outras condições que envolvem resposta inflamatória crônica. Seu uso é mais hospitalar, mas está disponível para comercialização também”, explica a farmacêutica.

“A resposta inflamatória é parte da resposta à infecção pelo vírus. No caso da zika, há inflamação proeminente no cérebro. Não sabemos no nosso modelo se a infecção é sistêmica e se também acontece em outros órgãos”, acrescenta ela.

Quando os animais foram tratados com esse fármaco, houve uma redução de 50% em crises epilépticas na adolescência. “Este tratamento também foi capaz de normalizar a sensibilidade a convulsões induzidas na idade adulta, que estava aumentada nos animais infectados pelo vírus da zika”, prossegue a professora.

“Porém, os animais infectados e tratados com esse medicamento continuaram apresentando prejuízo de memória e prejuízo motor. Ou seja, tivemos uma prevenção parcial e não total dos efeitos nocivos desencadeados pelo vírus”, complementa ela.

Para utilizar o mesmo tratamento em humanos, entretanto, ainda precisam ser feitos novos estudos. “O interessante é que esse medicamento é seguro para uso, pois já é aprovado pelas agências reguladoras de medicamentos para uso em outras doenças. Também é seguro fazer a administração em pacientes grávidas”, comenta Clarke, dizendo ser necessário mais estudos em outras espécies animais e em humanos, assim como em outros modelos de infecção.

Surto

O Brasil vive um surto de zika desde 2015. Trata-se do maior surto da doença já registrado na história, com casos tendo se espalhado para outros países da América do Sul, América Central e Caribe.

Da mesma família da febre amarela e da dengue, o vírus da zika é um flavivírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti. A infecção pelo vírus pode ser assintomática. Estima-se que 20% dos infectados sofram da chamada febre zika, com altas temperaturas e erupções cutâneas. Há uma correlação entre crianças nascidas com microcefalia quando mulheres foram infectadas durante a gravidez.

A pesquisa da UFRJ, publicada nesta quarta, é uma das tantas produzidas em meio a um esforço de compreender melhor os efeitos do trágico surto. “Assim que o país foi tomado por uma epidemia, criamos a Rede Zika UFRJ, que reuniu nossos pesquisadores mais renomados, em diferentes áreas, para descobrir as causas do problema e encontrar soluções rápidas na identificação, tratamento e perspectivas de erradicação”, comentou, em nota, a Reitoria da instituição à BBC Brasil.

A universidade avalia que tais pesquisas “são de crucial importância para a saúde pública”, principalmente diante de tantas “mortes, sequelas e, como vimos no caso da zika, provocando o aumento drástico de casos de microcefalia”.

Dificuldades

Julia Clarke acredita que pesquisas como esta seriam mais constantes e realizadas com maior eficiência se os trâmites burocráticos para importação de insumos e equipamentos fossem facilitados. Ela também reclama das dificuldades de obtenção de financiamento.

“No Brasil, não se tem uma consciência de que fazer ciência é importante, isso não é visto como uma coisa essencial. Por isso, em momentos de crise o orçamento destinado a financiar pesquisas acaba quase desaparecendo, como é o caso agora”, comenta.

Como o orçamento federal destinado para Ciência e Tecnologia em 2018 é quase 20% menor que o do ano passado, a UFRJ também sofre consequências – o déficit da universidade pode chegar a R$ 160 milhões.

“É um cenário muito crítico, agravado ainda pela Emenda Constitucional 95, que limitará os recursos para saúde e educação durante 20 anos. Temos denunciado à sociedade e apresentado o cenário ao Congresso Nacional, conjuntamente às iniciativas de importantes associações de pesquisadores ou universitárias, como Academia Brasileira de Ciência e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, entre outras. As consequências são tenebrosas para o futuro da ciência e do desenvolvimento científico do país e já podem ser sentidas agora, com a fuga de cérebros, interrupção de pesquisas e falta de equipamentos”, avalia a reitoria.

Além disso, há problemas de segurança. No último dia 18, dois profissionais do mesmo departamento de Julia Clarke foram sequestrados a 100 metros do laboratório.

“Apesar de termos uma divisão de segurança própria e vigias contratados para fazer a segurança dentro dos prédios, as vias da Cidade Universitária são públicas e de acesso aberto à toda a população. Por isso, a segurança das ruas fica sob responsabilidade da Polícia Militar. Um mês antes do caso, já havíamos nos reunido com o subsecretário de assuntos estratégicos da Secretaria de Segurança do Rio, para pedir reforço no policiamento e atenção especial a essa brutal modalidade de crime”, posicionou-se a reitoria.